sexta-feira, agosto 12, 2005

Como se reconhece uma entrega?

Muito se fala de entrega, não só em matéria de BDSM como na vida em geral, mas na verdade, além de a definir, como a reconhecer?
A actual sociedade de consumo arrasta em si um milhão de compromissos e escolhas perenes e de acesso fácil que nem sempre dão margem a bases sólidas e alicerces firmes, na generalidade!
No Mundo do prêt-a... em que tudo parece ser feito para um desgaste rápido e uma substituição ainda mais célere, onde ficam então as relações/uniões, sejam elas de que cariz forem?
No universo do BDSM, tudo visa a entrega como reconhecimento final de um suceder de parâmetros mais ou menos comuns. Mas e quando a distância se interpõe ou/e as partes não se conhecem ainda intimamente, e no entanto a entrega esteve sempre lá desde o primeiro contacto!?
Admito que se possa duvidar de relações à distância, de contactos virtuais, de Dominações não-presenciais, etc... mas se a entrega se verificar num primeiro contacto, como pode ser abalizada como genuína ou/e reconhecida pela outra parte? Falo aqui não só de submissos a entregarem-se mas também de Dominadores, porque entendo as relações no BDSM como uma partilha de entregas por ambas as partes! E como em tudo, haverá alguma hipótese de ser facilmente visivel/palpávelque o Dom/submisso se entregou por inteiro numa primeira aproximação?
Não me parece; julgo que tudo o que as partes podem esperar é sentir a entrega e, se for o caso, devolver a dádiva... Seja como for, uma entrega faz-se mais com os olhos a pele e os músculos, do que com fórmulas de bom-comportamento estipuladas para uma sessão ou/e relação com um Dominador/a. Recentemente, defendia que um submisso não o é menos por não apresentar uma coleira (real ou virtual) nem por obedecer/cumprir mais ou menos ordens ou/e tarefas de maior exigência de sacrifício; na verdade, entendo que a entrega de um submisso não é quantificada pelo que ele faz ao entregar-se mas como o sente...
Do mesmo modo, o reconhecer de uma entrega terá de ser sentida e não emoldurada por "avisos" e "atavios" no BDSM, porque nada é mais poderoso do que o olhar, o toque, os silêncios de quem se entrega... Mesmo que o submisso continue sem Dono e não tenha um Dominador em exclusivo, sou de opinião que há entregas que nunca serão ameaçadas, como há coleiras que nunca chegam a sair! No final, o importante é que tenha valido a pena, porque "a vida é feita de pequenos nadas!".

5 comentários:

Anónimo disse...

«A linguagem é uma fonte de mal entendidos» - Saint Exupéry

«O Homem que vê mal vê sempre menos do que aquilo que há para ver; o Homem que ouve mal ouve sempre algo mais do que aquilo que há para ouvir» - Nietzsche

Na confusão do que sentimos, ouvimos e vemos contrabalançado com o que queremos (ou precisamos) sentir, ver e ouvir, que opções temos?
Opto sempre pelo que sinto. A linguagem pode de facto ser uma fonte de mal entendidos, mas é-o especialmente porque poucas pessoas se esforçam por ouvir com o coração/alma. A alma... esta coisa que nos faz diferentes dos outros animais e que nos devia permitir reconhecer uma ENTREGA sem que fosse preciso uma palavra. Não deveria bastar para tanto os sinais de entrega, aqueles que mesmo que não se vejam se sentem? Porque é que quase nunca chega o que se diz sem palavras?! Porque é que nem depois de tentarmos dizer as palavras certas (quais serão as palavras certas????) parece chegar?!
As pessoas são animais complicados. Pelo menos as que respiram com alma.

«Muitas vezes, a alma parece-me apenas uma simples respiração do corpo» - Marguerite Yourcenar

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Minha boa amiga:

Antes de mais devo penitenciar-me pelo meu longo silêncio - mas, como podes verificar, também tenho negligenciado o meu blog. Agora, que o reactivei, dirijo-me a ti antes de mais ninguém.

Como se reconhece uma entrega? Não sei como se reconhece, mas reconhece-se. Acho que tens razão quando escreves que a entrega é interior mais do que exterior «esotérica» mais do que «exotérica», se quisermos exprimir-nos (o que até é apropriado) em termos espirituais.

Que a entrega é facilmente reconhecível, e que é uma coisa interior, prova-o um fenómeno que não é de modo nenhum raro; o do escravo que «pune» o seu senhor e se assenhoreia dele cumprindo escrupulosamente todos os rituais da entrega, mas não se entregando de verdade.

Qual é o senhor que não se apercebe disto e que não é afectado por isto? O escravo finge que finge a entrega para deixar bem claro que não se está a entregar; e o senhor sabe que está a ser punido porque pela sua parte também não se entregou.

A entrega só não se reconhece por cegueira ; e entre senhor e escravo, ou estão ambos lúcidos, ou estão ambos cegos. Não há meio termo.

Miss Libido disse...

Gosto em vê-lo! Senti-lhe a falta! :)

Recentemente, soube de uma história que envolve um Dom e uma sub numa relação D/s de um ano de sessões esporádicas. O Dom sempre incentivou o lado SM da relação, a submissa sempre o acompanhou numa entrega total e, um ano volvido, ele desiste dela em prol duma submissa que aprecia hard SM. Apesar do secretismo da relação e do factor distância, era visivel a quantos conheciam o par a entrega da submissa em questão, que o Dom nunca questionou mas sempre reconheceu em teoria. Quando resolve escolher outra sub, sem qualquer bom motivo aparente, a sua primeira sub questiona-o, amargurada: "como vai fazer para me devolver a minha entrega?"
Será legítimo um Dom fazer a sua sub avançar numa via por si escolhida e de repente "lançá-la as feras", apesar da entrega? Uma entrega devida e reconhecida não obriga a uma certa ética de dever?

ML

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

«Como vai fazer para me devolver a minha entrega?»
Esta é uma pergunta terrível, que eu nunca ouvi e espero nunca ouvir na minha vida. É claro que a entrega da escrava obriga a uma ética do dever. Se não for um dever do Senhor para com a sua escrava - que por definição não tem direitos - é certamente um dever do Senhor para consigo mesmo.

Eu, sinceramente, não sei o que faria na posição do dominante que tu referes. Ou encontrava uma maneira de devolver à minha submissa a sua entrega, ou, se não a encontrasse, não lha devolveria, e obrigaria a minha segunda submissa a aceitar a presença da primeira.

O que me colocaria, se a segunda me obedecesse, perante um novo problema: pode um dominante ter duas submissas ao mesmo tempo?

É claro que pode, dirão alguns. E até deve, dirão os mesmos : que melhor maneira haverá de deixar claro a uma escrava que ela é que pertence ao seu Senhor, e não ele a ela, do que obrigá-la a uma fidelidade à qual ele não está obrigado?

Eu próprio cheguei uma vez a tentar adquirir uma escrava enquanto tinha outra. Não o consegui, e por isso não sei qual teria sido o resultado de ter duas escravas ao mesmo tempo.

Hoje, que não tenho nenhuma, não estou para aí virado. Estou de novo à procura duma escrava, mas só de uma. Há alguma coisa em mim, que não sei muito bem o que é mas de que tenho muito a certeza, que se revolta contra a ideia dum harém.

Acho que objectivamente o harém teria sido a melhor solução para o dominante que referes, e concebivelmente também para as duas submissas envolvidas; mas tudo depende dos afectos em jogo, e esses não sei quais são.

Para mim, na fase a que cheguei, o harém seria uma solução emocionalmente impossível ; teria que escolher entre as duas submissas ; e, tendo que escolher, escolheria provavelmente aquela a quem não tivesse que devolver a entrega.

Miss Libido disse...

O seu texto é contraditório: se por um lado diz k tem de haver sim uma ética do dever, por outro concluiu k escolheria aquela a quem não tivesse de devolver a entrega! Uma submissa descartável não deixa de ter alma, nem deixa de ser menos gente por isso... assim como facto de o Senhor a fazer descartável, por analogia faz dele também um Dom descartável! A ética do dever diz-me que se há respeito na entrega da submissa, espera-se dever no comportamento do Senhor, preparando-a antes para uma liberdade forçada. Por outro lado, quando um Dom escolhe uma submissa a quem não tenha de devolver a entrega, reduz a uma banalidade o conceito de D/s: não faltam relações sem entrega fora do BDSM, em que continuo a acreditar numa Verdade maior que não obrigue à representação. De facto, a primeira submissa foi preterida, mas a unica realidade constatada foi o facto de o seu Dom ter passado a ser mais um homem a precisar da Mentira para se afirmar no Mundo. E mais do que a perda dele, o sentir que ele não era especial e que foi ela que o fez especial dentro dela, merecia certamente um pouco mais de cuidado na hora da fuga... Quem não sabe receber uma entrega nunca chega a Dominar, ilude-se apenas com momentos sem nome dos quais não terá de devolver a entrega!