segunda-feira, maio 30, 2005

Se doer, é porque vale a pena!

"Manter o espírito aberto
e absorver toda a experiência;
E se doer
é porque provavelmente vale a pena.

Eu continuo a acreditar no Paraíso.
Mas sei que não é um lugar que possamos procurar.
Não é um sítio onde vamos.
É o que sentimos durante um momento na vida
em que fazemos parte de alguma coisa.
E se vivermos esse momento,
ele durará para sempre..."


filme "A Praia"
inspirado no livro de Alex Garland

terça-feira, maio 24, 2005

O Medo.....

A situação mais estranha que tive a roçar o Medo, aconteceu há anos atrás, muitos anos...
De madrugada, ao subir ao meu quarto, às escuras, descalça para não acordar a casa que sonhava, planeava que no meu quarto os meus sentidos encontrassem primeiro o chão de madeira envernizado, depois o macio tapete de felpo cor-de-laranja rente à cama branca, lacada... Abri a porta sem barulho, entrei, e a sola dos pés arrepiou-se ao sentir uma nova sensação que eu não soube definir. Por décimas de segundo, o coração parou! Fiquei aterrada, porque o meu cérebro não conseguiu computar a informação que os neurónios lhe transmitiam desde a planta dos pés... Chamamos a isso "racionalizar", acho eu, e naqueles segundos foi-me completamente impossivel racionalizar o que sucedia ali!
Sob os pés nús sentia algo a esfarelar-se, frio, sem forma, irregular e pouco agradável. Nunca percebi se fiquei aterrada pela surpresa, pelo choque, pelo medo do desconhecido, ou pela duvida do que fazer a seguir. Era inevitável - tive de acender a luz na mesa-de-cabeceira!!!
Depois veio o riso, pela estupidez e simplicidade da situação! Parte do tecto, em volta de um candeeiro pesado de pingentes de vidro, da caliça do tecto, tinha caído - a maior parte estava sobre a cama, mas parte tinha-se esboroado no chão. Não sei o que pensei então, mas certamente senti-me ridícula por não ter conseguido de imediato racionalizar algo que só poderia ter explicação...

O Medo é isso mesmo - a incerteza sobre algo inesperado que temos no Presente e como lidar com isso, sentindo-nos ameaçados. No BDSM, o Medo - ainda que encapuçado - está sempre lá, e pergunto se será isso que nos repulsa/assusta, ou exactamente o que nos atrai??? Todos os adultos que têm afinidade com a prática de BDSM sabem de antemão que há riscos sempre presentes na prosecução de momentos de BDSM, quanto mais não seja pelos imponderáveis de ocasião - seja o pacemaker que não se sabe que o submisso tem, a epilepsia de que o Dom é portador sem o ter comunicado, a alergia a certo lubrificante anal, o dildo mal fabricado com uma farpa solta que causa um corte assustador, etc, etc, etc.. Todos os maus cenários são possíveis, não bastasse já a carga emocional que torna imprevisiveis os comportamentos - quer de Dom/Domme, switcher ou submissos. Tudo junto seria já a caliça debaixo dos pés, mas falta ainda um pormenor hiper-importante - a capacidade de discernir e de decidir sem hesitar, no momento em que um piscar de olhos revela tudo! Porque razão então continuamos a investir em momentos tão complicados? Pessoalmente, porque o Medo anda de mão-dada com o vencer do Medo!...
Vivemos a enfrentar a Morte, sorrimos com a certeza de espantar o chôro, comemos para sentir fome, andamos para parar, e por aí fora. O Medo existe para que o vençamos, ultrapassamos, reduzamos à sua importância e nada mais do que isso; para lhe dar o lugar que merece! Claro que os sentidos e os sentimentos são o bem-necessário para lá chegar, claro que o Prazer marca a diferença, sem dúvida, mas e o Prazer no Medo, não existe também? Quando se fala em Prazer na Dor, não será mais o Prazer no Medo da Dor? Porque a verdade é que ele nos faz correr para fugir, reagir para não sermos apanhados, racionalizar para não sermos postos à margem e capitularmos. O Medo é o motor de metade do que fazemos, embora as mais das vezes lhe chamemos muita coisa e até, mais frequentemente, "bom-senso"! O Medo auto-define-se, apesar de muitos outros medos particulares e intransmissiveis - mas os que hesitam em experimentar uma cena BDSM, por exemplo, não terão medo de gostar de vencer o medo? Porque quando tal acontece, a submissa (no meu caso) sai completamente realizada de toda a situação que ali viveu, porque conseguiu decidir continuar a calcar a caliça apesar de não a ter identificado, sem acender a luz! É um orgasmo de, à falta de melhor chamemos-lhe coragem, que apenas comporta um perigo maior: até onde sou capaz de ir? Se cheguei aqui, não serei capaz de quase tudo? Não uso drogas pesadas, mas imagino que o efeito de uma sessão de BDSM bem-conseguida seja semelhante a um rush de coca, uma vontade de não parar, de fazer mais e mais, de andar e andar... Mas o certo é que acontece o mesmo pelo lado do Dom/Domme: até onde sou capaz de ir? Se cheguei aqui, não serei capaz de quase tudo?...
Cada um saberá se se deitará de luz apagada, sem saber o que lhe ameaçou a sola dos pés, ou se a acenderá para ter a certeza de que não vale a pena ter Medo!
Com ou sem lágrimas,
gente é sempre gente.
Aqui e ali
hoje e ontem,
feliz ou triste.
Gente é lágrima
que por deslizar ri,
por cair chora.
Água salgada sem medo,
porque o medo, esse,
é triste,
e como a gente
é uma lágrima infeliz.
Há pouca gente feliz
... sem lágrimas!
Que por ser gente
é triste.
É água!!


Dezembro 2002
ML

sexta-feira, maio 20, 2005

Elogio da Loucura

"(...) XLVIII - Se julgais que me exprimo com mais presunção do que verdade, considerai comigo a existência dos homens; vereis com clareza a sua dívida para comigo (a Loucura) e a estima que me consagram grandes e pequenos. Não vamos examinar vida por vida, o que seria demasiado longo. Pelas minhas insígnes será fácil julgar das outras. Para quê falar do vulgo e da plebe, que, sem contestação, são inteiramente meus? São tão abundantes as formas de loucura e inventam todos os dias tantas formas novas, que nem mil Demócritos chegariam para se rirem delas. Não conseguiríeis imaginar quantos risos e divertimentos os deuses tiram diarimante desses homens. Passam as horas sóbrias da manhã a atender os votos e pedidos dos seus fiéis. Em breve, porém, atulhados de néctar e incapazes de qualquer ocupação séria, instalam-se no local mais elevado do Olimpo, donde se debruçam para espreitar as acções dos homens. Não há espectáculo mais divertido para eles. Pelos deuses, que comédias! Que agitação e que variedade de loucos!"

In "Elogio da Loucura"
Erasmo de Roterdão (séc. XVI)

terça-feira, maio 17, 2005

Depois do Sono...

Recentemente, alguém me comentava sobre este blog que estava "muito depressivo"...
As perdas na nossa vida tornam-nos depressivos, como as alegrias nos tornam contentes e os sucessos felizes! A tristeza faz parte da vida...
Sempre me recusei a arrumar esqueletos no armário - pelo contrário, trago-os para a luz do dia antes de serem esqueletos, ainda com a carne agarrada aos ossos, e insiro-os no meu quotidiano. Quando lhes limpar o pó como se fossem um qualquer biblot, apenas decorativos, então aí deixam de ser esqueletos e cumpriram a sua função; na limpeza da Primavera dão lugar a outro biblot e assim prossegue a vida!
Enquanto estão ali, à minha vista, a provocarem arrepios, tenho o direito de me arrepiar... Já não sei se tenho o direito de partilhar convosco essa sensação de queda no abismo, de salto no desconhecido, de infinita mudança na minha vida! Da mesma forma, todos temos o direito de nem olhar os biblots pirosos, os quadros de alto relevo chineses ou as flores de plástico nas jarras...
Seja como for, é assim que decoro a minha casa... mas podem sempre dar-me flores verdadeiras, com cheiro e com côr não-artificial. E tudo isso agradeço, porque dessa forma sei que na próxima Primavera nascerá um jardim aqui. Muito em breve!!! Até lá, obrigada por estarem aqui, a ajudar a limpar o pó aos biblots!...

quarta-feira, maio 11, 2005

"Eu queria parar isso,
esta vida achatada contra a parede,
muda e sem côr,
feita de pura luz,
esta vida só de visão, dividida
e remota, um impasse lúcido.
Eu confesso: isto não é um espelho,
é uma porta
atrás da qual estou presa."

in "Tricks With Mirrors"
Margaret Atwood

terça-feira, maio 10, 2005

Descansar Na Sombra

Todos os dias a vida nos carrega as costas!
Descobri uma recordação que me fez sorrir... e porque revivi, fiquei mais cheia! Todos os dias mudamos de pele...


"Agora é a minha vez!
A casa dorme, embalada pelo respirar da minha cadela e pelo sono do meu homem. Eu? Fugi para o escritório para embalar o sono, mas os papéis chamaram-me e a caneta agarrou-se aos meus três dedos da mão direita. Há muito tempo que isto não me acontecia: sair da cama para responder ao apelo da noite e da madrugada!
Estou deitada no catre do escritório, usando uma provocante combinação de seda que pertenceu à noite de casamento da minha mãe. Na rua, o nevoeiro apoderou-se das sombras e dos candeeiros, e novo dia se prepara para atracar nesta vila igual às outras. Na minha vida nada é igual desde há um mês atrás, há seis meses ou há um ano. Morreu família e nasceu uma criança com o meu sangue, feita pelo meu irmão, para perpetuar a loucura da família. Da nossa família de gente agitada não sei bem porquê ou para quê... Gente viva - até demais, para os dias que correm: somos os tais guerreiros que só gostam do prazer da guerra e não do fim, do objectivo, do propósito do sangue derramado. A criança de um mês será assim tão aguerrida? Gostará de questionar as coisas, de fazer o seu próprio mundo, como nós? É uma carta fechada, sem destinatário, com um selo multado por excesso de peso; e o envelope já vem sujo...
E a minha viagem? Também está multada por excesso de bagagem? Que destino terá o meu envelope? Tenho precisado de visitar uma igreja, ou duas, ou até três. Mas só porque no verão são sítios frescos - onde se podem descansar os pés e os olhos - onde não há fumos, buzinas, semáforos, beatas nem cestos do lixo - só a tal Paz de que certos poetas falam, de que precisam.
Dizem que estou a fugir. Não, acho que não! Só a descansar da viagem, dos atropelos da correria desenfreada por um lugar ao sol! Nesta altura do passeio apetecia-me sair: mudar de continente, de língua, de país, e recomeçar...
Uma espécie de purificação Tibetana, de exorcismo Hindú... Acho que não é fugir! É só descansar num qualquer apeadeiro do caminho, numa sombra ao pé de um rio! E caminhar, muito; muitas vezes. Arrastar os pés na água gelada e morrer de medo de cobras-de-água e de répteis em geral. Olhar para montes e vales e nunca estar parada, receando os bichos nas pernas... É sair do combóio para esticar as pernas, porque quinze minutos depois sabemos ter de regressar ao combóio, à viagem! Isto não é fugir! É só procurar outra realidade, porque a anterior se esgotou, apodreceu no seu favo, morreu no seu invólucro enxovalhado.
Chega de viajar. Paramos. Há percursos alternativos, certamente... Mas aqui, às três da manhã, só há um ensaio da Paz das Igrejas - falsa, emprestada e adiada, esta. Mas serve por agora, enquanto o dia não nasce, e regressa o medo de estar a fugir. Enquanto a casa abana sob o sono profundo do meu homem e da minha cadela, tudo está bem!
Ainda que eu esteja moribunda e que o Sol me condene..."
Lx - 1996

domingo, maio 08, 2005

O Karma

"(...)
O karma é o encantamento (desastroso) das acções (das suas causas e dos seus efeitos). O budista quer afastar-se do karma; quer suspender o jogo da causalidade; quer ausentar-se dos signos, ignorar a questão prática: que fazer? Não deixo, eu próprio, de pô-la a mim mesmo e suspiro por esta suspensão do karma que é o nirvana. Também as situações que, por acaso, me não impoêm qualquer responsabilidade de conduta, por mais dolorosas que sejam, são recebidas numa espécie de paz; sofro, mas pelo menos nada tenho para decidir; a máquina do amor (imaginário) funciona aqui completamente sózinha, sem mim; como um operário da idade electrónica, ou como o cábula do fundo da aula, apenas tenho de estar presente: o karma (a máquina, a aula) sussurra diante de mim, mas sem mim. Na própria infelicidade, posso, num momento muito breve, arranjar um cantinho de preguiça. (...)"

in "Fragmentos de Um Discurso Amoroso"
Roland Barthes (1977)

sexta-feira, maio 06, 2005

- ONTEM -

"Por favor, não me deixes cair, pousa-me quando te fores embora! Por favor..." - pediu ela numa voz sumida de quem não se quer despedir.
E ele prometeu! E ela acreditou!
Virou o Mundo do avesso apenas porque acreditava; e não se desilude quem em nós acredita.
Ela transformou as coisas. As coisas floresceram. Criou novas flores, novas cores, novos cactos... Fez de tudo para o ajudar a crescer nessa ideia fantástica de cumplicidade imaculada. Derrubou medos e barreiras apenas porque ele acreditava nela. Foi feliz! E também o fez feliz no micro-segundo que o cérebro demora a tomar o lugar da emoção irreflectida...
Depois ele deixou-a cair!

PRECE

"...NA CAPELA ABOBADADA DAS TUAS MÃOS, ERGO UMA ORAÇÃO AOS HOMENS DE BOA-VONTADE!.."

segunda-feira, maio 02, 2005

A Perda

Dói!
Dói muito e arde na alma porque o espaço ficou lá cheio de imagens e de sentires e de sentimentos... A saudade queima e deixa marca e o gelo não a apaga, nem o secar as lágrimas, nem o fechar os olhos para tentar dormir...
Dói!
Tanto que chega a ser insuportável, infinito porque não há medida para o encaixar num padrão. Fotografias e coisas com cheiro foi o que ficou de palpável, o que não se vê é que não tem lugar onde ser pousado; o coração é agora a moldura.
Dói!
Um latejar de infinito agradecimento pela descoberta de novo sentir e do partilhar do seu sentir, do dar nome a novas maneiras de estar no Mundo dos vivos. Um perpétuo redemoinho de fronteiras pela frente, que agora acabou...
Dói!
Saber que o "que foi não volta a ser!"... Que amar não chega para não perder! Que o Tempo nunca vai apagar o que recebi... porque o mar vai e vem, mas nunca se dá, nunca se entrega. Assim é o Tempo!
Dói!
A ferida ficará sempre e uma ternura imensa pelo que tantas vezes me salvou de ficar só! Assim é a vida. Quem chega e parte ajuda, e nunca voltaremos a ser os mesmos...

Um afago nos olhos mais ternos que não voltarei a ver, pela saudade que deixa e o Bem que fez! Um adeus que não o é!
29 de Abril de 2005