terça-feira, maio 24, 2005

O Medo.....

A situação mais estranha que tive a roçar o Medo, aconteceu há anos atrás, muitos anos...
De madrugada, ao subir ao meu quarto, às escuras, descalça para não acordar a casa que sonhava, planeava que no meu quarto os meus sentidos encontrassem primeiro o chão de madeira envernizado, depois o macio tapete de felpo cor-de-laranja rente à cama branca, lacada... Abri a porta sem barulho, entrei, e a sola dos pés arrepiou-se ao sentir uma nova sensação que eu não soube definir. Por décimas de segundo, o coração parou! Fiquei aterrada, porque o meu cérebro não conseguiu computar a informação que os neurónios lhe transmitiam desde a planta dos pés... Chamamos a isso "racionalizar", acho eu, e naqueles segundos foi-me completamente impossivel racionalizar o que sucedia ali!
Sob os pés nús sentia algo a esfarelar-se, frio, sem forma, irregular e pouco agradável. Nunca percebi se fiquei aterrada pela surpresa, pelo choque, pelo medo do desconhecido, ou pela duvida do que fazer a seguir. Era inevitável - tive de acender a luz na mesa-de-cabeceira!!!
Depois veio o riso, pela estupidez e simplicidade da situação! Parte do tecto, em volta de um candeeiro pesado de pingentes de vidro, da caliça do tecto, tinha caído - a maior parte estava sobre a cama, mas parte tinha-se esboroado no chão. Não sei o que pensei então, mas certamente senti-me ridícula por não ter conseguido de imediato racionalizar algo que só poderia ter explicação...

O Medo é isso mesmo - a incerteza sobre algo inesperado que temos no Presente e como lidar com isso, sentindo-nos ameaçados. No BDSM, o Medo - ainda que encapuçado - está sempre lá, e pergunto se será isso que nos repulsa/assusta, ou exactamente o que nos atrai??? Todos os adultos que têm afinidade com a prática de BDSM sabem de antemão que há riscos sempre presentes na prosecução de momentos de BDSM, quanto mais não seja pelos imponderáveis de ocasião - seja o pacemaker que não se sabe que o submisso tem, a epilepsia de que o Dom é portador sem o ter comunicado, a alergia a certo lubrificante anal, o dildo mal fabricado com uma farpa solta que causa um corte assustador, etc, etc, etc.. Todos os maus cenários são possíveis, não bastasse já a carga emocional que torna imprevisiveis os comportamentos - quer de Dom/Domme, switcher ou submissos. Tudo junto seria já a caliça debaixo dos pés, mas falta ainda um pormenor hiper-importante - a capacidade de discernir e de decidir sem hesitar, no momento em que um piscar de olhos revela tudo! Porque razão então continuamos a investir em momentos tão complicados? Pessoalmente, porque o Medo anda de mão-dada com o vencer do Medo!...
Vivemos a enfrentar a Morte, sorrimos com a certeza de espantar o chôro, comemos para sentir fome, andamos para parar, e por aí fora. O Medo existe para que o vençamos, ultrapassamos, reduzamos à sua importância e nada mais do que isso; para lhe dar o lugar que merece! Claro que os sentidos e os sentimentos são o bem-necessário para lá chegar, claro que o Prazer marca a diferença, sem dúvida, mas e o Prazer no Medo, não existe também? Quando se fala em Prazer na Dor, não será mais o Prazer no Medo da Dor? Porque a verdade é que ele nos faz correr para fugir, reagir para não sermos apanhados, racionalizar para não sermos postos à margem e capitularmos. O Medo é o motor de metade do que fazemos, embora as mais das vezes lhe chamemos muita coisa e até, mais frequentemente, "bom-senso"! O Medo auto-define-se, apesar de muitos outros medos particulares e intransmissiveis - mas os que hesitam em experimentar uma cena BDSM, por exemplo, não terão medo de gostar de vencer o medo? Porque quando tal acontece, a submissa (no meu caso) sai completamente realizada de toda a situação que ali viveu, porque conseguiu decidir continuar a calcar a caliça apesar de não a ter identificado, sem acender a luz! É um orgasmo de, à falta de melhor chamemos-lhe coragem, que apenas comporta um perigo maior: até onde sou capaz de ir? Se cheguei aqui, não serei capaz de quase tudo? Não uso drogas pesadas, mas imagino que o efeito de uma sessão de BDSM bem-conseguida seja semelhante a um rush de coca, uma vontade de não parar, de fazer mais e mais, de andar e andar... Mas o certo é que acontece o mesmo pelo lado do Dom/Domme: até onde sou capaz de ir? Se cheguei aqui, não serei capaz de quase tudo?...
Cada um saberá se se deitará de luz apagada, sem saber o que lhe ameaçou a sola dos pés, ou se a acenderá para ter a certeza de que não vale a pena ter Medo!

4 comentários:

supermourinho disse...

A situação descrita ao entrar no quarto é o resultado de um mecanismo de sobrevivência aperfeiçoado ao longo de milhões de anos. Perante uma situação de dor, stress, medo, humilhação, incerteza e similares o nosso corpo (e dos animais em geral) responde de imediato com uma libertação de adrenalina na corrente sanguínea, mesmo antes de o cérebro ter analisado o sinal de alerta que causou essa libertação. Desta forma, enquanto o cérebro faz uma análise racional do sinal, a adrenalina já está a preparar o corpo para uma resposta física (chamada “reacção de luta ou fuga”) caso seja de facto necessária. Se o sinal for analisado como um falso alarme (como na historia aqui descrita) a produção de adrenalina cessa e o metabolismo volta ao normal.

Para alguma informação científica sobre a relação entre a dor, o medo, a humilhação e a incerteza presentes no BDSM e o prazer (inclusive sexual) podem consultar a seguinte pagina: Hormonas e BDSM

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

O medo...
o medo que os laços sejam fortes demais...
O medo que os laços sejam ténues demais...
o medo de ir além...
O medo de ficar aquém...
O medo da escrava...
O medo do Senhor...
O prazer do medo...
A superação do medo...
E a coragem. O ousar. O transcender. O exultar. O existir.

Anónimo disse...

Texto belíssimo...
Identifico-me com muito do que escreveste...
O Medo é, de facto, muitas vezes a energia vital que nos move, que nos faz ser mais... Vencê-lo é a prova suprema, e a suprema glória.
Nesses momentos em que nos transcendemos, conseguimos estar, fugazmente, á altura das nossas expectativas de nós mesmos... que são, talvez, quase sempre, demasiado altas...
Eco mental ... “Prova superada... que venha a seguinte...”
Espero que continuemos a sentir esse Medo criador e a vencê-lo criativamente... sempre...
Beijos
Ana (DarkPrincess)

Lueji disse...

oh filha, tens que mandar fazer a revisão à casa, qualquer dia cai-te tudo em cima :P