domingo, agosto 14, 2005

Relato verídico

A caça às bruxas pela Igreja é tema sobrio o bastante para dispensar muitas apresentações. Neste estudo histórico e sociológico, Jules Michelet - o maior historiador da escola romântica - inclui alguns relatos verídicos dessas perseguições e sanções a feiticeiras na aurora do séc. XV...

"(...) Ele foi impiedoso. Disse:
- Porque recusou ser revestida dos dons de Deus, terá de ficar nua. E merecia assim ficar diante de toda a Terra, em vez de diante do seu confessor que nada dirá...
- Mas jure-me segredo... Se falasse disso, perder-me-ia...
Sem ainda a despir completamente, fê-la subir à cama e disse:
- Merecia não esta cama, mas o cadafalso que viu em Aix.
Assustada e a tremer, não discutiu, humilhou-se. Tinha as pernas inchadas e uma pequena enfermidade que devia desolá-la. Então, como disciplina, ele bateu-lhe algumas vezes.
Ela ficara admirada ao ver que no meio de tantas ameaças, ele lhe pusera, no entanto, uma almofada sob cada cotovelo. Mas mais admirada ainda ficou quando o juiz, pai irritado, a surpreendeu com um beijo estranho, impúdico e inesperado.
Monstruosa inconsequência. Adoração louca de que o amor não é aqui desculpa. O que causa horror é que então ele pouco a amava, não a poupava. Viram-se as suas crueis beberagens e vai-se assistir ao seu abandono. Ele detestava-a por valer mais que as mulheres envilecidas. Detestava-a por ter tentado (tão inocentemente) comprometê-lo. Mas sobretudo não lhe perdoava tentar conservar a alma. Só queria dominá-la, mas acolhia com esperança as palavras que ela soltava muitas vezes "sinto que não viverei". Libertino celerado! Cobria de beijos vergonhosos o pobre corpo destruído que desejaria ver morrer!
Ela estava fora de si, não sabia o que pensar. Ele disse-lhe:
- Isto não é tudo. O bom Deus não está satisfeito
Fê-la descer da cama e pôr-se de joelhos, dizendo-lhe que era preciso ficar completamente nua. A isto, ela soltou um grito e pediu clemência... Mas era demasiada emoção, sobreveio um desfalecimento e ficou à sua mercê. Por muito entorpecida que estivesse, sentiu um contacto de "divina doçura", que pouco durou. No momento em que retomou a consciência, ele estreitou-a e causou-lhe uma dor nova que ela nunca sentira.
Como lhe explicou ele estas contradições chocantes de carícias e crueldade? Deu-as por provas de paciência e de obediência? Ou passou ousadamente ao verdadeiro fundo de Molinos: "Que é à força de pecados que se mata o Pecado?" Tomou ela isto a sério? E não compreendeu que estes fingimentos de justiça, de expiação e de penitência eram apenas libertinagem?
Não queria saber, na estranha confusão moral que sentia. Suportava o seu mestre, tendo algum medo dele, com um estranho amor de escrava, prosseguindo na comédia de receber em cada dia pequenas penitências. Girard poupava-a tão pouco que nem sequer lhe escondia as suas relações com outras mulheres. Queria pô-la no convento. Entretanto ela era o seu brinquedo; via-o e deixava-o agir. Frágil e mais enfraquecida ainda com aquelas vergonhas enervantes, cada vez mais melancólica, pouco queria à vida, repetindo as palavras (de algum modo tristes para Girard) - sinto que bem cedo morrerei..."

in "O Castigo das Feiticeiras"
Jules Michelet (1798-1874)

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