quarta-feira, julho 28, 2004

A decência impiedosa…

Prefácio de “História de O”, de Pauline Réage, assinado por Jean Paulhan, anos ´70, edição portuguesa da Delfos

<<(…) E, no entanto, O exprime, à sua maneira, um ideal viril. Viril, ou, pelo menos, masculino. Finalmente, uma mulher que confessa! Mas o quê? Aquilo que as mulheres sempre têm procurado evitar (mas nunca tanto como hoje). Aquilo que os homens de todos os tempos sempre lamentaram: que não cessem de obedecer ao seu sangue; pois tudo nelas é sexo, até o espírito; que será sempre necessário alimentá-las, lavá-las, compô-las, bater-lhes; que elas têm simplesmente necessidade de um bom senhor e que ele desdenhe da sua bondade: porque elas procuram fazer-se amar por outrem, por todo o ardor, toda a alegria, por tudo o que deriva naturalmente da nossa ternura, logo que esta se declara. Em resumo, que é preciso levar sempre um chicote quando as vamos ver. Há poucos homens que não tenham sonhado possuir uma Justine. Mas, que eu saiba, mulher alguma jamais sonhou ser Justine. Ou, pelo menos, sonhado em alta voz, com aquele orgulho próprio dos lamentos e das lágrimas, aquela violência conquistadora, aquela capacidade de sofrimento e aquela vontade, tensa, até à dilaceração e à explosão…
(…) Preciso realmente de pensar agora no que há de, precisamente, estranho, no desejo masculino: de insustentável. Existem pedras onde sopram os ventos, que se mexem de repente ou que se põe a emitir suspiros, a tocar como um bandolim. As pessoas vêm vê-las de muito longe. Contudo, por mais que se ame a música, o primeiro desejo é de fugir. Realmente, e se o papel dos livros eróticos (ou livros perigosos, se preferirem), fosse o de nos informar? O de nos acalmar os escrúpulos, como um confessor? Sei que, em geral, as pessoas se habituam a isso. E os homens também não ficam embaraçados por muito tempo. Tomam a sus defesa, dizem que foram eles os primeiros. Mentem e, se assim se pode dizer, os factos estão patentes: evidentes, demasiado evidentes. As mulheres também, dir-me-ão. Sem dúvida. Mas nelas o acto não é patente. Podem sempre afirmar que não. Que decência! De onde derivou, sem dúvida, a opinião de que elas são as mais belas, que a beleza é feminina. Mais belas, não tenho a certeza. Mas, em qualquer caso, discretas, o que é uma espécie de beleza… (…)
 
Apesar de datado, este texto acaba por falar de Dominação no seu sentido mais generalista – um critico-homem, subjugado pelo peso de um livro que ele acredita escrito por uma mulher. Um livro sobre Dominação, onde tortura, dor e submissão são infligidos em nome de um maior ideal – o amor de O pelo seu dominador, René. Na época, o assunto era apelativo mas perigoso (como os tais livros), embora agora – trinta anos depois - assuma uma certa leveza que nunca julguei possível. No entanto, interessa-me o lado feminino da questão – o purgar, o expiar do amor através da entrega da mulher ao seu senhor, ao homem que lhe dá a segurança de se ocupar dela, de a ter entre as suas mãos ternas depois de a marcar com chicotadas de poder. Apesar de o livro ser uma referência, o seu prefácio escrito por um homem é quase um livro dentro do livro. Impossível não ser tocado pelo sentimento de impotência que o critico transmite, não só no entendimento do perfil do autor, como da sua personagem principal e mais até, do seu “carrasco”, Sir Stephen. O texto - um espaço de sombras e gritos, onde cada mulher se sente inevitavelmente atraída e repelida pela ideia de que poderia ser ela na reconciliação, mas nunca no oferecimento à dor, pelo prazer do seu dono. E será verdade? Não creio. Qualquer ser humano se adapta as circunstâncias, feliz ou infelizmente, e o condicionamento da mente humana é bem mais fácil do que poderá parecer – vejam-se situações adversas e suas vítimas, nas guerras, epidemias, fomes, doença e por ai fora. Todos procuramos sobreviver, e sempre da melhor maneira que conseguirmos. O existiu na paz de se saber completamente passiva de alguém, escolhida, o que só por si a faz especial, a ela e à atenção que lhe dão; haverá outra maneira de alguém se tornar especial no Mundo com a tal maior decência?
Impiedosa? Sem dúvida, mas nunca ninguém disse que ser especial era tarefa fácil. Talvez que por vezes os meios justifiquem os fins…

ML


1 comentário:

Anónimo disse...

A História d'O é muito mais do que um livro. É um hino ao direito de escolha de uma mulher por uma vida que muitos consideram socialmente inaceitável - e que, por isso mesmo, obriga a muito mais coragem. Ser sub, neste mundo, é a atitude mais Dominadora que se pode ter. Ser Dom(me) é fácil, especialmente se se pretender ser apenas um(a) Dom(me) abusador(a), cujo interesse se limita a ter prazer sem se preocupar com o prazer de quem se submete. Ou, pior ainda, se o objectivo for apenas saborear a parte sexual do fenómeno. Ser sub, pelo contrário, como O foi ou como algumas corajosas mulheres que conheço são, é algo de superior, de quase divino. A coragem de se esquecerem de si, de forma a conquistarem patamares mais elevados da existência, está acima de todos os elogios. Doms, Doms putativos ou meros tarados sexuais, aprendam a aprender com a submissão como a maior prova de valentia que uma pessoa pode dar-nos. E, da próxima vez que estiverem com alguém submisso, entendam que a submissão não transforma ninguém num ser menor, mas em alguém com quem, por um momento ou por uma vida inteira, é possível criar a mais estreita de todas as relações sentimentais!
Tu sabes, não sabes, velha Amiga?