terça-feira, agosto 03, 2004

O pensamento sexual

“(…) Era um pensar muito sereno, o género de pensar a que se devem ter entregado os homens do Paleolítico. As coisas não eram absurdas nem
explicáveis. Era um quebra-cabeças que podíamos empurrar com os dois pés, quando nos cansávamos. Aliás, podia-se afastar facilmente tudo, até os Himalaias. Era precisamente o tipo de pensar oposto ao de Maomet. Não conduzia absolutamente a nada e por consequência era agradável. O grande edifício que se podia construir ao longo de uma longa foda também podia ruir num abrir e fechar de olhos. O que contava era a foda e não o trabalho de construção. Era como viver na Arca durante o Dilúvio: havia de tudo à disposição, desde o mais complicado até à chave de parafusos. Para quê cometer assassínio, estupro ou incesto quando tudo quanto nos pediam era que matássemos tempo?
(…) Fechado assim, dias e noites a fio, comecei a compreender que pensar, quando não é masturbador, é lenitivo, curativo, agradável. O pensar que não nos leva a lado nenhum leva-nos a todo o lado; todo o outro pensar é feito sobre trilhos e por muito longo que seja o percurso no fim ergue-se sempre o depósito ou a rotunda de recolha. No fim há sempre uma lanterna vermelha que diz: PÁRE! Mas quando o pénis desata a pensar não há nenhum sinal de paragem nem nada que o impeça: é um feriado perpétuo, com isca fresca e o peixe sempre a mordiscar…”

in “Trópico de Capricórnio”Henry Miller (1961)


Curiosa a analogia entre vários tipos de pensamento, principalmente o facto de o pénis adquirir essa espécie de consciência da presa a que Miller se refere. Se o nosso pensamento quotidiano é um pisar dos trilhos que se sabe sempre onde acabam, o do pénis engalfinhado atrás do sangue do coito é um pensamento verdadeiramente livre, embora condicionado pelo desejo. Na verdade, afinal de contas, são os objectivos que nos limitam todo o tipo de pensamento. Ao pensar, estamos pura e simplesmente a tentar alcançar uma meta, seja responder a uma questão, racionalizar uma ideia, explicar uma construção, não importa o quê… O pensamento do pénis segundo Henry Miller é, assim, o único verdadeiro, genuíno, inato, porque não se perde em devaneios nem desvios – solta a fera, só se detém perante a gruta do prazer, onde bebe de uma goteira de palavras soltas que compõem o prazer.
Nada mais importa, uma vez despoletado o que se poderá popularmente chamar de “pensamento sexual” – quando o pensamento passa a ser táctil, verbal, externo ao raciocínio, uma demonstração do próprio acto de pensar. Pulsa o pénis e a vagina como um coração, latejam as veias com o sangue quente, e o que era pensamento transforma-se no reflexo do pensamento – uma obra-de-arte… Como um quadro, uma esultura, um mural! Aberta a caça, o pénis segue o seu pensamento sexual até à raia da cópula e só ai estaca, ciente de que terá muito para dizer!!!
Gosto de pensar que todos nós somos filhos de um pensamento sexual, daí a luta de prazer e dor que o orgasmo implica – o momento maior em que se faz luz e uma centelha de algo superior à compreensão toma conta de nós. Embala-nos como crianças com medo… e é bom adormecer assim!

ML

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