domingo, dezembro 25, 2005

Uma reza!

Caiu o último floco de neve amarela.
Caiu a folha do calendário com ela...
O anjo vadio que se deitou com o sol, bateu a porta e atirou-se para a cama vazia.
As luzes piscam ainda, rendidas à sua inércia de condenadas... como uma gaguez para os olhos.
Cães enregelados saiem de debaixo dos carros.
Pessoas de gelo debaixo de cartões de caixas de compras levantam-se com os ossos a estalar e a alma morta...
O mar é o mesmo.
Dominador e belo e rude e mau e suave e feito das lágrimas do céu.
A água de que somos feitos, cheia de seiva azul às vezes verde...
Mar e uma sereia que se espraia nele, violada.

A areia, a submissa.
Sempre ali, sempre pronta, disponível, sem opção.
Batida pelo mar que não a quer mas nao a deixa ser de mais ninguem.
A água e os graos de areia quente, gelada, amiga, amada.
Os caes que passeiam na beira da praia, sem destino, que estao apenas e assim fazem o Mundo.
A gente de coração sem alma que apenas está e assim muda o Mundo.
Não há sol hoje aqui.
Uma certa nostalgia invade o ar numa Terra decrépita
povoada por gente que não é feliz.
Somos nós!
Gente que viaja mas nao chega, nao aporta em lugar algum, nao quer, nao pode, recusa...

O mar e a areia a chamarem-me.
Eu na minha varanda a ver o Mundo acordar.
Tenho fome.
Aqui está um silêncio de tumba e arrepio-me.
Não há sol e arrepio-me.
Estou descalça e arrepio-me.
Estou sozinha e arrepio-me.
A pele arrepia-se sozinha!
Tenho muita fome...
Tenho os olhos esfomeados, mas não há sol nem vida para lá deste meu mundo seguro.
Só os caes vagueiam...
e a minha alma de areia embalada pelo mar.
Molho os olhos no abismo da varanda, no limite.
Não estou triste nem contente e isso chateia-me deveras.
Continuo com fome.
Maos, corpo, alma e sol com fome.
A alma vagueia livre!

"Como não sei rezar, só queria mostrar o meu olhar!"

1 comentário:

Anónimo disse...

Lindíssimo.
Todo o acto criativo encerra em si a possibilidade de ascensão a um patamar superior, pela sua Beleza, pela sua Verdade, ou pela conjunção das duas. E é isto que sempre justifica o acto criativo. Belíssimo o que escreveste. Confesso que estava a ouvir Wim Mertens enquanto te lia e senti isso, esse patamar sobre o qual escrevi. E foi a música que me levou lá. A música de Wim Mertens e a música da tua alma, transposta no teu olhar e nas tuas palavras.

Um Beijo.
Thomasz.