Costumo dizer que Dominação não é fazer uma sessão bem-sucedida com uma submissa, mas sim que a mesma se ofereça para voltar, antes de essa indicação lhe ser dada. Ou seja, Dominação acontece não quando o facto se consume in loco por actos, mas se antes e depois a submissa continua rendida e disponível para alterar o seu percurso na tentativa de servir o seu Dominador. Quando tal acontece, a Dominação já se efectivou e o que pode variar será o método com que se concretiza e prolonga a mesma, o acto prático de entrega física, complementando assim a entrega primeira.
Psicologicamente, Dominação como a entendo vive não só de reflexos condicionados de causa/efeito mas, principalmente, quando existe um olhar, um gesto ou um silêncio que anulam toda a vontade contrária da parte de quem se entrega.
Bater, causar dor, aprendem-se e aperfeiçoam-se, tal como a aguentar a dor e/ou a humilhação; dominação da vontade, não! Há quem a tenha inatamente e quem nunca a chegue a ter. Por outro lado, há gente que se rende nos actos mas não na sua vontade inteira, que nunca deixa de ser soberana, ainda que adaptada às circunstâncias, burilada e lapidada, mas sua! Não hesito no que afirmo - o acto de servir no BDSM não é inevitável: "Dois não fazem, se um não quer!". Consensualidade no modo como se concretiza e complementa a rendição da vontade é fundamental, mas só existe se ambos se entregarem/renderem/derem.
A eterna questão sobre quem Domina quem no BDSM é um ovo sem base para se segurar de pé. Ambos Dominam e contornam os obstáculos à entrega por jogos psicológicos mais ou menos óbvios, mais ou menos conseguidos - é a vontade que tem de se entregar, não o corpo. Fácil será então aguentar a sanção, defícil será não julgar a legitimidade da mesma.
Render-se à vontade de outrem é um processo interior, muito complexo, porque contra-natura em essência: o ser humano distingue-se pela sua vontade e capacidade de decisão. Quando à ausência de vontade têm de se adicionar outros elementos, como o bom-senso, os conceitos sociais de Bem e Mal, os dogmas e ditames religiosos, etc., etc., nessa altura os conflitos internos podem tornar-se não só um turbilhão de sentimentos e emoções, como levantar dúvidas que podem causar dilemas e danos psicológicos difíceis de superar.
Render-se à vontade de outrem aniquilando a sua própria capacidade de decisão e de querer, não é um processo rápido e indolor. A primeira dor na Dominação para um submisso é deixar de ser e passar a estar apenas, porque a vontade é anulada na entrega. E quem reclama esse direito sem sensibilidade nem cuidado especial, nao Domina, antes violenta, deixa de ser um Senhor/Dominador a quem se deve respeito e passa a ser um inimigo a quem se tem medo apenas.
Ajoelhar antes do Senhor o ordenar é resultado da Dominação, ajoelhar agarrada pelos cabelos porque a submissa hesitou no cumprimento da ordem é violência. Se se conseguir Dominar a vontade de... antes de Dominar o corpo, defendo que a Dominação acontecerá em pleno, inevitável e incontornável, mais tarde ou mais cedo, numa entrega que se deseja honesta e duradoura.
Não há regras sobre o processo de exercer Dominação Psicológica que, insisto, tem forçosamente de acontecer antes do controle físico e da inibição da vontade executável. Não se pode dizer "berrar é a primeira regra" ou "dois dias sem falar com a submissa, trazem-na pela trela para sempre!"; cada caso é um caso, e em cada situação o modus operandi tem de se adaptar à situação e não o contrário. Se um Dominador pensa conseguir alcançar psicologicamente a sua submissa apenas com festas na cabeça após cem chibatadas, desiluda-se; marca-lhe o corpo mas nao a alma, ainda que ela finja a maior rendição. O acto reflexo mais básico pode ser infrutífero ou o mais bem conseguido possível, mas o que o distingue é a intenção com que é feito - se se trata de aplacar uma dor, ou de consolidar o Poder; se é apenas inevitável num ritual de causa/efeito ou se tem a intenção de reforçar a entrega da submissa que nunca pode nem deve sentir-se abandonada por "acidente", ou seja, para a cabeça se render tem de lá estar a outra parte, não pode ser omissa.
Dominar dá trabalho e exige invstimento, seja no BDSM como em qualquer outro tipo de relação inter-pessoal; sentimentos implicam entrega, e o BDSM - contrariamente à vox populi - vive dos sentimentos/emoções/sensações que decorrem das intenções e dos actos, antes, durante e depois... da prática do BDSM. Numa qualquer entrega, Amor/ódio/confiança/desconfiança/medo/receio/temor fundem-se num pot-pourri de intrincada complexidade; imagine-se essa fórmula com a componente dor agregada e a palavra incondicional acrescida, com actos que pressupõem ultrapassar limites, e gente entregue a uma afinidade nem sempre entendida...
Dominar Psicologicamente quase implica um acto de amor em que se dá para receber: gera-se a confiança necessária para que a entrega seja incondicional. No limite da certeza, ultrapassada a fronteira da dúvida, resta apenas colher os frutos semeados pela compreensão, ternura, justeza, que o Dominador tem de ofertar à submissa para que o acto de dar se torne mais que uma simples e bem treinada capacidade de resistência à dor.
E a entrega consegue-se com um olhar de compreeensão, com uma mão que afaga o rosto, com a sms que diz "Estou a pensar nas marcas que te fiz, minha cadela!". Cada caso é um caso e não há dois Dominadores, nem submissas, iguais - assim, também não são concebíveis duas Dominações iguais. Há quem só seja Dominado pela língua de uma chibata a lamber a pele, mas a entrega é total quando a língua da submissa lambe as mãos do Dono com os olhos a arder de realização. Sem que ele ordene! Sem que ela possa evitar fazê-lo... Quem tem de se dar está Dominado além do Bem e do Mal.
Depois, conseguir que o Céu e a Terra mudem de lugar e a dádiva não acabe enquanto se dá o corpo pela alma - essa é a pedra-de-toque que abre todas as portas no reino do BDSM.
ML (2005)
1 comentário:
Cada palavra, cada ponto, cada virgula, cada frase deste texto, reflecte extraordinariamente bem uma alma submissa, deixando transparecer uma certa angústia, própria de quem vive o BDSM com uma grande felicidade.
Beijo de outra alma submissa
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