sexta-feira, março 24, 2006

Volatilização

Frequento Foruns e canais de IRC de BDSM há uns anos.
Quando entrei neste mundo paralelo, o frescor da inocência em tudo era o que me movia...
Depois, como em tudo na vida, começamos a assinar declarações de intenções e de factos, e sem sabermos como, já fazemos parte da engrenagem. Dá-se a desilusão e o recuo, o repensar das coisas, o querer isenção... mas é tarde demais. Sem percebermos, já lá estamos e já fazemos parte do puzzle, das mesquinharias e das tonterias e das intrigas; não compactuámos, mas estivemos lá e assistimos e isso faz de nós cúmplices sem retorno.
No começo achava que me conseguiria manter àparte e fiz de tudo para que assim fosse, mas não é possível. A vida e as sub-vidas da vida obrigam-nos a compromissos e à tomada de atitudes, e o que é a nossa conciciência não é uma consciência colectiva.
Hoje perguntaram-me "desencantada?"... e hesitei.
Sim, desencantada pela realidade geral e não pela da gente em torno do BDSM e dos seus meandros mais sórdidos; desencantada com a vida e a gente, comigo e com o que nao faço e com o que faço. Sei que vou continuar em frente, estou de olhos secos e não é muito grave; acho que de cada vez que uma tomada de consciência nos assola se torna mais fácil porque de cada vez é mais previsível. Não estou triste, só sem saber o que fazer quando percebemos que nos estamos a tornar Sanchos Panças a acompanhar Dom Quixotes sem Rocinantes...
Não mudava uma linha na minha vida, excepto numa situação fora do BDSM.
Mas usava mais sinónimos e menos metáforas, fazia menos romance com dias de borrasca que são o que são - dias de borrasca! Não queria voltar atrás, mas gostava de avançar rapidamente.
Descobri que depois dos 40 a vida só é miserável porque nunca mais surpreende, um ciclo de dejá vus e de coisas aquecidas insiste em instalar-se ad eternum. Odeio rotinas. Odeio vidas cheias de rotina. Gente sempre igual. Eu, sempre igual...
Enquanto acreditamos vale a pena, mas depois, como rotular esta permanente, insofismável e quase patética leveza do ser? Porque insustentável sempre soube que era! Mas porque tem o ser de ter leveza?
O BDSM dá-me paz. Uma paz séria e compacta. Não uma paz mole, de faz-de-conta. O BDSM deixa-me ser como sou - liberta-me numa viagem dos sentidos e da alma; ganho alma com consistência, quase com cheiro e textura. Renasço em cada dor e em cada ordem cumprida, em cada humilhação que aguento, em cada silêncio de garganta fechada; sinto-me feliz por não estar triste e atenta ao que se passa fora de mim, dou prazer a quem me Domina, sendo, ao deixar de ser... As funções todas cumpridas e os sonhos todos ao rubro. A volatilização.
E nunca o ser foi tão leve...!

4 comentários:

Miss Libido disse...

KJ
Obrigada por seres um leitor assíduo deste despretencioso blog e por dares feed-back ao que acrescento; se não tiver leitores com reacção, este blog não faz sentido! No entanto, não seria possível "iluminar-te" em 3 ou 4 linhas num comment, pelo que terei todo o gosto em ter uma "conversa" mais alargada contigo por outro meio, e-mail na circunstância. Mas à laia de conclusão, nem a tua observação concorda com o k escrevi no post, nem o verbo "querer" é uma premissa no que toca a Dominação/submissão, como eu o entendo; "desejar" é mais apropriado... Há muitos tipos de submissa/os e de Dominadores e até de BDSM, mas eu faço o que tenho de fazer e sinto o que consigo sentir, nunca em desespero de causa mas porque me faz sentir completa. Ou seja, em mim o BDSM não é uma consequência mas uma causa e abençoada a minha consciência do facto!!!!
Bom fim-semana e espero o teu mail * ML

Anónimo disse...

Boa tarde,

Gosto da profundeza dos teus textos.
Mas diz-me: O BDSM justifica tanto apelo, tanta campanha?
Parece-me que fica bonito e interessante descrito conforme o descreves. Porque na realidade, nao passa de uma desculpa.
Bj

Miss Libido disse...

Fly, KJ e demais que acham que há uma cruzada de BDSM, uma "recruta"... pela minha parte desenganem-se. Não tenho idade para precisar de desculpas para fazer seja o que for e nunca me carcaterizou essa maneira de estar. Há coisas que só se entendem estando no centro delas, sentindo-as. Sendo este um blog de uma submissa que pratica BDSM, será legítimo falar do tema sem pudor. Por outro lado, em meia duzia de linhas é sempre dificil expressar o que se quer dizer, para ambos os lados. Mas entendo e agradeço o comment, este e outros. Quanto a uma "conversa" alargada, estou no IRC, no #BDSM-24`7 e terei muito gosto em trocarmos impressões. E o meu mail está acessível sim...
Obrigada a todos que ajudam a que se estabeleça comunicação maturamente, também sobre BDSM...
*ML

Anónimo disse...

Boa tarde.
Não sou muito de tecer comentários ou observações em blogues ou fóruns, mas tenho que reconhecer que este texto é de uma rara beleza e profundidade, simplesmente porque cru, doloroso e claro na sua exposição. Sou sentimentalmente adepto de BDSM, embora há muitos anos não encontre par para viver esse belo mundo, e com os meus 45 anos concordo plenamente que os tabus deviam cair um pouco e as coisas poderem ser mais vividas, em intensidade e claridade...